Num momento em que se questiona a legitimidade das lideranças e suas condutas diante de um cenário de corrupção e de posturas que vão além da fronteira do sinismo, é necessário clarividência para processar a enxurrada de informações que nos chega diariamente de forma tão parcial e tão “sem isenção”. Contexto no qual a leitura de uma obra como A Revolução dos Bichos, se faz obrigatória.

A história se passa em uma granja onde os animais estão cansados da exploração do dono, o Sr. Jones. Estimulados pelo discurso de Porco Major, os animais fazem uma revolução e expulsam o Sr. Jones. Os suínos, considerados os animais mais inteligentes, passam a liderar a granja e disseminar a ideia de que todos os animais são iguais, mas “uns são mais iguais que outros”.
Depois de disputar o poder com outro suíno, o Porco Napoleão acaba liderando a granja de forma ditatorial. Os outros animais passam a trabalhar muito e têm a comida racionada. Por sua vez, os porcos levam uma vida confortável e abastada. Assim, vai se concretizando a chamada República dos Bichos.
Contudo, alguns animais começam a perceber que a vida estava pior do que antes da revolução, passam a questionar o novo sistema e, por isso, acabam sendo mortos. Com o tempo, os animais que viveram a época do Sr. Jones morrem, e os ideais da revolução se perdem. O livro acaba com os porcos andando sobre duas patas e se aliando definitivamente aos humanos. “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”, encerra a fábula.
Por mais que uma história permita muitas interpretações (como ler hoje o discurso do Porco Major a respeito do domínio humano sobre os animais e não pensar na onda atual de veganismo?), o contexto da época em que viveu o autor e a sua biografia dão pistas sobre as reflexões que ele quis fomentar. A obra é vista como uma crítica severa ao stalinismo ou uma metáfora sobre o fracasso dos sistemas políticos.
Vida e obra
Nascido na Índia em 1903, Eric Arthur Blair, sob o pseudônimo de George Orwell, foi um jornalista e escritor conhecido pelo seu envolvimento com a política e sua crítica aos sistemas opressores. Além de A Revolução dos Bichos, outras obras famosas de Orwell são: 1884 e Dias na Birmânia. O autor morreu em 1950, na Inglaterra, vítima de uma tuberculose.
Para a maioria dos críticos, A Revolução dos Bichos é uma sátira à política de Josef Stalin, líder da União Soviética, que teria contrariado os princípios da Revolução Russa de 1917.
O professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense Bernardo Kocher lembra que Orwell era militante socialista, filiado ao Partido Trabalhista Independente, e acredita que a obra marca a aproximação de Orwell com a direita da época. “No final da Segunda Guerra Mundial , a democracia foi sedutora para muitos escritores e intelectuais. George Orwell foi um deles”, afirma Kocher. Ele acredita que a obra serviu para desconstruir a ideia de comunismo e o que foi a Revolução Soviética.
O professor de Letras da Unisinos, Claudio Zanini, explica que o impacto do lançamento da obra foi grande. Tanto que George Orwell demorou para conseguir publicar. “A crítica ao stalinismo é muito forte, mas aparece de maneira disfarçada. Ele se protegeu muito com a fábula”, afirma Zanini.
Na metáfora, o velho Porco Major representaria o pensador alemão Karl Marx, pelos seus ideais de igualdade e insatisfação com a exploração imposta. O Porco Napoleão seria Stalin, ditador que traiu os princípios da revolução. O Sr. Jones, dono da granja, seria uma alusão aos czares e a Alexander Keresnky, que foram derrubados pelos revolucionários russos.
E hoje?
A pedagoga e professora da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto, Elaine Assolini, afirma que o livro é de extrema importância para pensar sobre o funcionamento de diversos tipos de governo, principalmente o autoritário. “A obra transcende o contexto do regime stalinista. A política continua sendo um espaço marcado pela persuasão e manipulação”, explica Elaine. Outros temas como corrupção, vaidade e sonho de poder também podem ser pensados a partir do clássico.
Kocher acredita que o comunismo é uma realidade fantasma que ainda aparece em uma guerra ideológica contemporânea e que o livro pode ser usado “para derrubar os argumentos de quem defende o comunismo”.
Se “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, como já disse o escritor italiano Ítalo Calvino, não há dúvidas de que estamos diante de um que ainda tem muito a nos ensinar.
Nota do editor: o comunismo, na forma entendida por Kocher, refere-se modelo praticado por Stalin em função do golpe. De um modo geral, o comunismo em essência, parece nunca haver existido. O que existiu e que continua a existir de forma muito intensa, é o sentimento de comunidade inerente ás pessoas humanas. Talvez, ainda de forma mais latente, entre os menos abastados.
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